Como O Produtor Rural Pode Comprovar A Função Social Da Propriedade Para Evitar A Desapropriação Do Imóvel Para Fins De Reforma Agrária?
Função Social da Propriedade - Desapropriação - Reforma Agrária
Patrice Noeli Fróes Silva
Como O Produtor Rural Pode Comprovar A Função Social Da Propriedade Para Evitar A Desapropriação Do Imóvel Para Fins De Reforma Agrária?
Há muito o direito do proprietário da terra deixou de ser um direito individualista e absoluto; o proprietário não mais poderá usar da terra como bem entender, pois, ele possui deveres para com a sociedade, ou seja, ele possui deveres coletivos, tais como: preservação do meio ambiente, dos recursos naturais, respeito às relações trabalhistas, ao bem-estar animal e do homem do campo...
A ótica econômica, ou seja, a produtividade da propriedade rural não é o único requisito para comprovação da sua função social. Não é por ser produtiva e gerar riqueza ao proprietário e também à sociedade que o proprietário rural estará garantindo o cumprimento integral da função social da propriedade rural.
O STF proferiu uma recente decisão à respeito da possibilidade de desapropriação de propriedades rurais produtivas que não atendam a função social da propriedade rural.
Mas o que isso quer dizer? A Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) é um instrumento jurídico que tem por finalidade declarar que uma lei ou parte dela é inconstitucional, ou seja, que contratia a Constituição Federal. Por meio dela, é possível questionara constitucionalidade de leis e atos normativos que posam ferir os direitos fundamnetais, os princípios constitucionais e a democracia. A competência para julgar a ADI é sempre do Supremo Tribunal Federal.
Então, uma Ação Direta de Inconstitucionalidade foi ajuizada em 2007 pela Confederação da Agricultura e Pecuária do Brasil (CNA). A entidade argumentava que os requisitos de produtividade e função social não poderiam ser exigidos simultaneamente da propriedade rural.
Mas porque eu estou falando isso? Porque foi essa ação que deu origem ao julgado que autoriza a desapropriação de área rural produtiva que não atenda a sua função social.
É importante sabermos que para regular as relações entre o homem e a propriedade, o Brasil vem implantando e aperfeiçoando as políticas agrícolas por meio da elaboração de uma legislação que busca aliar a atividade econômica rural à preservação dos recursos naturais, para tanto, o Brasil utiliza-se de mecanismos de avaliação da função social da propriedade.
Por meio da elaboração de uma legislação que busca aliar a atividade econômica rural à preservação dos recursos naturais, por exemplo, o Brasil utiliza-se de mecanismos de avaliação da função social da propriedade.
O Estatuto da Terra de 1964, concretizou em nosso ordenamento jurídico a função social da propriedade por meio da exigência simultânea da presença de caráter sociológico, caráter econômico, caráter ambiental e do caráter trabalhista na exploração da terra.
Em seu Art. 2° o ET nos diz que:
"É assegurada a todos a oportunidade de acesso à propriedade da terra, condicionada pela sua função social, na forma prevista nesta Lei.
§ 1° A propriedade da terra desempenha integralmente a sua função social quando, simultaneamente:
a) favorece o bem-estar dos proprietários e dos trabalhadores que nela labutam, assim como de suas famílias; (caráter sociológico)
b) mantém níveis satisfatórios de produtividade; (caráter econômico)
c) assegura a conservação dos recursos naturais; (caráter ambiental)
d) observa as disposições legais que regulam as justas relações de trabalho entre os que a possuem e a cultivem. (caráter trabalhista)."
Mais tarde a CF/88 nos trouxe os critérios de atendimento da função social da propriedade em seu art 186.
A função social da propriedade, portanto, deve atender aos seguintes critérios, conforme comando do art. 186 da CF:
I - aproveitamento racional e adequado;
II - utilização adequada dos recursos naturais disponíveis e preservação do meio ambiente;
III - observância das disposições que regulam as relações de trabalho;
IV - exploração que favoreça o bem-estar dos proprietários e dos trabalhadores.
O desatendimento de um desses requisitos pode trazer consequências negativas ao proprietário rural desde impedimento de acesso ao crédito rural, o aumento da alíquota do ITR, ou seja, do valor pago para fins de ITR, até a perda da propriedade para fins de reforma agrária, como já decidiu o STF.
Mas como o produtor rural pode se precaver de possível desapropriação de seu imóvel rural para fins de reforma agrária?
Mantendo em dia, em conjunto e atualizados, o seguinte:
1. A propriedade deve ser produtiva cumprindo as exigências segundo os graus de produtividade constantes no art. 6º da Lei da Reforma Agrária (Lei 8629/93) que basicamente diz que a utilização da terra não pode ser inferior a 80%, calculado pela relação percentual entre a área efetivamente utilizada e a área aproveitável total do imóvel. E o grau de eficiência na exploração deve ser igual ou superior a 100%, levando em consideração a média da região onde se localiza o imóvel e os parâmetros indicados pelo Poder Público;
2. Cadastro Nacional de Imóveis Rurais (CNIR) e Certificado de Cadastro do Imóvel Rural (CCIR), a declaração dos dados devem estar de acordo com a realidade da propriedade rural, caso haja erro os dados devem ser corrigidos, utilizando-se o georreferenciamento e, se necessário, o seu desmembramento do todo maior, evitando que o proprietário rural venha a ser responsabilizado por algum dano ocorrido no todo maior;
3. Declarar corretamente e manter em dia a declaração anual de Imposto Territorial Rural (ITR), a fim de declarar a produtividade da propriedade e seu valor atual;
4. O Ato Declaratório Ambiental (ADA), declarando existentes no imóvel rural: Áreas de Preservação Permanente (APP), Reserva Legal (ARL), Reserva Particular do Patrimônio Natural (RPPN), Área de Interesse Ecológico (AIE), Área de Servidão Ambiental (ASA), Áreas cobertas por Floresta Nativa (AFN) e Áreas Alagadas para Usinas Hidrelétricas (AUH);
5. Cadastro Ambiental Rural (CAR), é um registro eletrônico, obrigatório para todos os imóveis rurais, para base de dados para o controle, monitoramento e combate ao desmatamento das florestas e para planejamento ambiental e econômico dos imóveis rurais;
6. Deve manter em dia os registros e as fichas sanitárias dos animais perante os órgãos responsáveis;
7. Manter em dia suas obrigações trabalhistas (salários, tributos, segurança dos trabalhadores, bem-estar dos mesmos, elaborar o Programa De Gerenciamento De Riscos No Trabalho Rural – PGRTR), manter em dia o registro de seus funcionários (CTPS anotadas e encargos pagos); manter, também, em dia os contratos de arrendamento e parceria rural, recolhendo os devidos impostos incidentes sobre estes contratos.
8. Manter-se longe de crimes ambientais, respeitando a legislação vigente.
Mesmo assim, mesmo estando em dia com suas obrigações e mesmo sendo fiel às exigências legais a propriedade pode entrar na mira do INCRA e ser objeto de processo de desapropriação para fins de Reforma Agrária, por que fica à critério do órgão fiscalizador o grau de enquadramento do produtor às exigências contidas na nossa legislação.
Querem ver um bom exemplo? Numa situação hipotética, um proprietário rural que precisou socorrer-se dos serviços de safristas e não possuía instalações adequadas na lavoura para os mesmos, foi denunciado por utilização de “trabalho análago à escravidão”. Mas ele possui 15 empregados formais, com CTPS anotada e dispõe à esses empregados as instalações adequadas para descanso, higiene e alimentação. Porém, as instalações não eram suficientes para atender mais 4 safristas contratados. Por isso, pela falta de espaço adequado para esses 4 safristas o empregador sofreu sérias consequências legais, cíveis e criminais.
A NR-31 exige que os alojamentos devem ter: 3m² por cama simples ou 4,5m² por beliche incluída área de circulação e armário ou camas individuais separadas por 1m; 1 cama para cada trabalhador alojado no quarto, sendo vedado "triliche"; camas c/ certificado do INMETRO; beliche com proteção lateral e escada afixada na estrutura; armários individuais.
Mas o proprietário rural não dispunha de mais 04 camas adequadas e de acordo com as exigências da NR-31 e colocou camas simples em um espaço existente no alojamento não conseguindo respeitar o espaço de 1m entre as camas. E mais, como não dispunha de mais acentos no refeitório, forneceu mais 4 banquinhos aos safristas.
Então, eu questiono: até que ponto ele deixou de cumprir com a função social da propriedade? Qual foi o grau de descumprimento? Quem mensura esse dano?
Eram 15 empregados fixos, registrados, com alojamento e segurança cumpridos de acordo com a legislação pertinente (NR-31) e somente 4, também formais pois tinham contrato de safra, que precisavam ser encaixados nos alojamentos e no refeitório... em razão dessa fração de mão de obra o proprietário sofreu todo o tipo de sansão e perdeu o enquadramento da função social da propriedade no que diz respeito aos eixos trabalhista e sociológico, não podendo mais contratar crédito rural.
Mais uma vez eu questiono: até que ponto ele deixou de cumprir com a função social da propriedade no que diz respeito ao caráter trabalhista e sociológico? Qual foi o grau de descumprimento, comparado ao grau de acerto? Quem decide isso?
O mesmo pode ocorrer com relação à utilização adequada dos recursos naturais disponíveis e preservação do meio ambiente. Imaginem que em uma propriedade que possui reserva legal tenha esse espaço invadido pelo gado. O dono demora a perceber e esse gado faz um estrago enorme. Atendendo o produtor rural a todos os requisitos da função social da propriedade e tendo falhado minimamente no dever de cuidado ambiental, é correta uma punição tão severa ao proprietário do imóvel rural?
A lista de exigências para comprovação da produtividade e da função social da propriedade é longa e podem ser exigidos ainda mais documentos a depender da localização do imóvel e da atividade rural desenvolvida, mas é melhor prevenir que remediar.
Os danos de sofrer um longo processo de desapropriação de terras não são somente financeiros, mas também, emocionais, uma vez que muitos produtores rurais possuem uma história, um vínculo afetivo muito forte com a terra que pode ter, inclusive, passado de geração em geração.
Lembro, finalmente, que na falta de apenas um desses requisitos listados acima, mesmo que a propriedade seja produtiva, ela pode vir a ser alvo de desapropriação para fins de reforma agrária por interesse público, conforme decidiu recentemente o Supremo Tribunal Federal.
Patrice Fróes Silva – OAB/RS 49.242